Uma nota destoante
Antonio Falcão – afalkao@hotmail.com
Lola falou com satisfação estampada no rosto que seus avós
maternos, Dolores e Juan – filhos de catalães e nascidos em São Paulo –,
compuseram a brigada internacional que combateu o fascismo na Guerra Civil
Espanhola (1936-39). À época, eles tinham Pepe, o filho de oito anos, e o
deixaram com parentes enquanto tentavam impedir a ascensão de Franco. Com a
derrota inapelável dos republicanos, socialistas e comunistas, os dois
antifascistas voltaram ao Brasil e, como feirantes, deram a Pepe, além do bom
exemplo político, uma ótima educação. Assim, ainda na faculdade, ele fez a
campanha democrática em pró do petróleo nacional. Bem como se engajou –
sobretudo após conhecer a sindicalista Rosa, mãe de Lola – em outras lutas. No
golpe militar de 1964, quando a filha tinha 14 anos, o casal esteve alguns
meses na cadeia por força dessa trajetória militante em defesa das liberdades
públicas daqui e do resto do mundo.
Quanto a si própria, Lola disse que, contra o arbítrio
ditatorial, fez inclusive assalto a banco pra custear a guerrilha. Tudo em
1968, quando o regime atingiu o clímax da repressão. À época, ela era estudante
de cursinho e, de arma em punho, caiu na clandestinidade. Isso até se exilar,
vivendo na Europa com Leo, o homem amado e pai das suas duas filhas. Só que, de
volta ao País com a anistia, o marido morreu, fazendo-a sofrer. Mas, para dar
continuidade às lutas libertárias, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores. Daí,
em 1992, denunciando corrupções e desmandos do então presidente da República,
ao lado das filhas caras pintadas – também petistas – ela exigiu nas ruas o
impeachment do desastrado Fernando Collor. Dessa época até agora, as três
participam de corpo e alma das grandes causas que impulsionam o progresso da
humanidade.
Por último, num misto de alegria e mágoa, a ex-guerrilheira
revelou: “Dos meus quatro netos, três têm inclinações cívicas e sociais
coerentes com os antepassados. Tanto que aderiram aos justos protestos
iniciados em junho último nas ruas brasileiras. Porém, o netinho caçula,
coitado, trafica e usa drogas. Pior: juntou-se a uns rapazes neonazistas, que
agridem negros e homossexuais. Por isso, hoje, foge da polícia, sendo uma nota
destoante na história da família. E em tudo contraria o caráter exemplar e o
idealismo moral que herdamos de Dolores e Juan” – expôs a avó emocionada.
*Escritor
Quanto vale a vida de um juiz?
Cláudio dell´Orto*
A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro
(Amaerj) promove, em 8 de novembro, a cerimônia de entrega do Prêmio Patrícia
Accioli de Direitos Humanos, em sua segunda edição, que homenageia essa grande
juíza fluminense, assassinada há dois anos. Pagou com a vida a coragem e ética
no exercício de seu trabalho em defesa da sociedade, da Justiça, do Direito e
da democracia.
Quanto vale a vida de um magistrado? Esta é uma pergunta
que deveria ser sempre respondida antes de se veicularem informações incorretas
sobre os vencimentos dos juízes, cujos salários respeitam o teto
constitucional, e de se especular com relação a proventos como verbas indenizatórias
e auxílio-alimentação. É preciso considerar que a Magistratura é uma carreira
que impõe limitações à conduta cotidiana dos profissionais, inclusive
pertinentes à segurança. Trata-se de uma profissão que deve ter remuneração
compatível com os riscos a ela inerentes e com suas responsabilidades como
guardiã dos direitos e deveres e garantidora das prerrogativas democráticas.
Os magistrados são submetidos a formação especial e deles
se espera, além de profundo conhecimento jurídico e das leis, um especial comprometimento
com a realização dos objetivos fundamentais da República. Afinal, são membros
de Poder Judiciário, uma das instituições basilares do Estado, selecionados e
nomeados por meio de rigoroso concurso público, acessível a qualquer brasileiro
que se disponha a cumprir as várias etapas de preparação, que duram vários
anos, incluindo a difícil formação acadêmica em Direito.
Os juízes não podem desempenhar outra atividade econômica
paralela, exceto um cargo de professor. Isso exige que o seu sistema remuneratório
seja um instrumento capaz de assegurar nível de vida compatível com as
responsabilidades atribuídas pela sociedade nos milhões de processos que
diariamente precisam ser decididos para que todos os brasileiros possam ter uma
vida mais justa, reduzindo-se as desigualdades sociais.
Uma remuneração adequada certamente permite que os
cidadãos disponham de um Judiciário melhor, porque os profissionais mais
competentes não serão estimulados a migrar para outras áreas do Direito nas
quais os salários e vantagens financeiras sejam mais atraentes. Os estudantes
de Direito, sabendo que a Magistratura é bem remunerada, terão mais um estímulo
para se dedicar ao estudo aprofundado das leis e dos conteúdos acadêmicos dessa
ciência. Os magistrados que já acumulam experiência no serviço jurisdicional
trabalharão com a certeza de que suas famílias terão uma vida compatível com a
responsabilidade e o risco das atividades que exercem.
Seria mais justo com a categoria e com a sociedade que se
perguntasse, antes de se especular quanto aos vencimentos dos magistrados,
quanto vale a sua vida, este bem irreparável. Há cerca de 500 juízes ameaçados
no Brasil atualmente. Alguns, assim como suas famílias, pagam alto preço pelo
exercício digno da profissão, como nos lembra dolorosamente a memória de
Patrícia Accioli.
*Desembargador Cláudio dell´Orto é o presidente da
Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (AMAERJ).
Lourival Paixão
João Morais de Sousa*
As pessoas se tornam grandes pelas ações e gestos
desinteressados e simples. E o menino conheceu Lourival Paixão que durante
cinco anos exerceu a grandeza sem nunca expressar palavras. Apenas risos,
acenos e agir sereno. Era o dono de uma caminhoneta de cabine dupla que fazia a
feira de Baixa Verde a Campo Grande todos os dias. Durante muitos anos,
alegrava as manhãs dos moradores residentes nos arredores do percurso, ao som
da Asa Branca. Saía às 5h e às 6h
estava passando na entrada da casa do menino. Antes, ligava a buzina especial –
eram seis cornetas emparelhadas – que ecoava a música, despertando
prazerosamente à vizinhança.
O irmão e a irmã mais velhos do menino vivenciaram, dois anos
antes, os gestos de grandeza de Lourival Paixão: as caronas. É verdade que os
irmãos, vez por outra, ofertavam uma galinha capoeira, feijão e milho verde na
época do inverno; jerimuns e cozinhados de batata-doce que o pai plantava
quando os açudes (da casa velha e o lá de baixo) davam vazantes. Ele nunca
cobrou nada. Recebia as ofertas com leveza e contentamento. Acenava sorrindo e
balançava afirmativamente a cabeça. Quando o menino entrou na escola aumentou
para quatro os caroneiros. A caminhoneta podia vir de qualquer jeito – quando
lotada se apertavam, um sentava no colo do outro e ninguém ia a pé. As ofertas
não eram a razão das caronas. Tanto que nas estiagens elas sumiam e as coronas
continuavam.
Os estudantes economizavam uma hora de caminhada. Eram 6 km de
distância. De forma que o menino chegava ao colégio sempre 50 minutos antes. E
esse tempo fez a diferença no processo de aprendizagem – ele concluía as
tarefas passadas para casa e revisava as matérias. Em casa o tempo era ocupado
com as obrigações do roçado e a mãe afirmava: “aqui é pra trabalho pesado e
sério. E a noite é pra dormir”. O patrão já havia resmungado afirmando que para
limpar mato e tratar de gado não precisava de estudo. A mãe havia respondido, a
contragosto do marido, que tinha fé em Deus que os filhos dariam “pra gente”.
Por isso tinham que trabalhar como “bicho”.
Além de revisar as matérias, sobrava tempo para brincar (de
futebol, garrafão, matada, bola de gude, pinhão). Quando perdia a carona ia a
pé. A volta era sempre a base da “viação canela”. O sol do meio-dia castigava!
E não passava outro “Lourival”. Algumas vezes, a esperança e o pertencimento em
dias melhores esvaeciam. Mas os sonhos continuavam!
Assim, Lourival Paixão contribuiu para um futuro melhor para
aqueles estudantes. Seu jeito sensível e simples de se comunicar sem expressar
palavras deixou uma lição, especialmente para o menino, de que é possível
melhorar a vida de muita gente sem se fazer alarde ou autopromoção, mas agindo
com discrição e humildade. Utilizando-se de recursos disponíveis; pequenas
coisas. Não buscando fora aquilo que está dentro. Lourival agiu com paixão e
pertencimento à vida e ao ser, em um lugar de ausência do poder público. Ele
saiu fisicamente da vida dos estudantes como entrou: discreto e sem palavras.
Para entrar gigantemente em seus corações pelas ações e gestos.
* Professor
da UFRPE e membro da Academia Igarassuense de Cultura e Letras.