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ANO XIV - Agosto de 2013

ARTIGOS



Uma nota destoante

Antonio Falcão – afalkao@hotmail.com

Lola falou com satisfação estampada no rosto que seus avós maternos, Dolores e Juan – filhos de catalães e nascidos em São Paulo –, compuseram a brigada internacional que combateu o fascismo na Guerra Civil Espanhola (1936-39). À época, eles tinham Pepe, o filho de oito anos, e o deixaram com parentes enquanto tentavam impedir a ascensão de Franco. Com a derrota inapelável dos republicanos, socialistas e comunistas, os dois antifascistas voltaram ao Brasil e, como feirantes, deram a Pepe, além do bom exemplo político, uma ótima educação. Assim, ainda na faculdade, ele fez a campanha democrática em pró do petróleo nacional. Bem como se engajou – sobretudo após conhecer a sindicalista Rosa, mãe de Lola – em outras lutas. No golpe militar de 1964, quando a filha tinha 14 anos, o casal esteve alguns meses na cadeia por força dessa trajetória militante em defesa das liberdades públicas daqui e do resto do mundo.
Quanto a si própria, Lola disse que, contra o arbítrio ditatorial, fez inclusive assalto a banco pra custear a guerrilha. Tudo em 1968, quando o regime atingiu o clímax da repressão. À época, ela era estudante de cursinho e, de arma em punho, caiu na clandestinidade. Isso até se exilar, vivendo na Europa com Leo, o homem amado e pai das suas duas filhas. Só que, de volta ao País com a anistia, o marido morreu, fazendo-a sofrer. Mas, para dar continuidade às lutas libertárias, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores. Daí, em 1992, denunciando corrupções e desmandos do então presidente da República, ao lado das filhas caras pintadas – também petistas – ela exigiu nas ruas o impeachment do desastrado Fernando Collor. Dessa época até agora, as três participam de corpo e alma das grandes causas que impulsionam o progresso da humanidade.
Por último, num misto de alegria e mágoa, a ex-guerrilheira revelou: “Dos meus quatro netos, três têm inclinações cívicas e sociais coerentes com os antepassados. Tanto que aderiram aos justos protestos iniciados em junho último nas ruas brasileiras. Porém, o netinho caçula, coitado, trafica e usa drogas. Pior: juntou-se a uns rapazes neonazistas, que agridem negros e homossexuais. Por isso, hoje, foge da polícia, sendo uma nota destoante na história da família. E em tudo contraria o caráter exemplar e o idealismo moral que herdamos de Dolores e Juan” – expôs a avó emocionada.

*Escritor

Quanto vale a vida de um juiz?

Cláudio dell´Orto*  

A Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) promove, em 8 de novembro, a cerimônia de entrega do Prêmio Patrícia Accioli de Direitos Humanos, em sua segunda edição, que homenageia essa grande juíza fluminense, assassinada há dois anos. Pagou com a vida a coragem e ética no exercício de seu trabalho em defesa da sociedade, da Justiça, do Direito e da democracia.
Quanto vale a vida de um magistrado? Esta é uma pergunta que deveria ser sempre respondida antes de se veicularem informações incorretas sobre os vencimentos dos juízes, cujos salários respeitam o teto constitucional, e de se especular com relação a proventos como verbas indenizatórias e auxílio-alimentação. É preciso considerar que a Magistratura é uma carreira que impõe limitações à conduta cotidiana dos profissionais, inclusive pertinentes à segurança. Trata-se de uma profissão que deve ter remuneração compatível com os riscos a ela inerentes e com suas responsabilidades como guardiã dos direitos e deveres e garantidora das prerrogativas democráticas.
Os magistrados são submetidos a formação especial e deles se espera, além de profundo conhecimento jurídico e das leis, um especial comprometimento com a realização dos objetivos fundamentais da República. Afinal, são membros de Poder Judiciário, uma das instituições basilares do Estado, selecionados e nomeados por meio de rigoroso concurso público, acessível a qualquer brasileiro que se disponha a cumprir as várias etapas de preparação, que duram vários anos, incluindo a difícil formação acadêmica em Direito.
Os juízes não podem desempenhar outra atividade econômica paralela, exceto um cargo de professor. Isso exige que o seu sistema remuneratório seja um instrumento capaz de assegurar nível de vida compatível com as responsabilidades atribuídas pela sociedade nos milhões de processos que diariamente precisam ser decididos para que todos os brasileiros possam ter uma vida mais justa, reduzindo-se as desigualdades sociais.
Uma remuneração adequada certamente permite que os cidadãos disponham de um Judiciário melhor, porque os profissionais mais competentes não serão estimulados a migrar para outras áreas do Direito nas quais os salários e vantagens financeiras sejam mais atraentes. Os estudantes de Direito, sabendo que a Magistratura é bem remunerada, terão mais um estímulo para se dedicar ao estudo aprofundado das leis e dos conteúdos acadêmicos dessa ciência. Os magistrados que já acumulam experiência no serviço jurisdicional trabalharão com a certeza de que suas famílias terão uma vida compatível com a responsabilidade e o risco das atividades que exercem.
Seria mais justo com a categoria e com a sociedade que se perguntasse, antes de se especular quanto aos vencimentos dos magistrados, quanto vale a sua vida, este bem irreparável. Há cerca de 500 juízes ameaçados no Brasil atualmente. Alguns, assim como suas famílias, pagam alto preço pelo exercício digno da profissão, como nos lembra dolorosamente a memória de Patrícia Accioli.
*Desembargador Cláudio dell´Orto é o presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (AMAERJ).


Lourival Paixão

João Morais de Sousa*

As pessoas se tornam grandes pelas ações e gestos desinteressados e simples. E o menino conheceu Lourival Paixão que durante cinco anos exerceu a grandeza sem nunca expressar palavras. Apenas risos, acenos e agir sereno. Era o dono de uma caminhoneta de cabine dupla que fazia a feira de Baixa Verde a Campo Grande todos os dias. Durante muitos anos, alegrava as manhãs dos moradores residentes nos arredores do percurso, ao som da Asa Branca. Saía às 5h e às 6h estava passando na entrada da casa do menino. Antes, ligava a buzina especial – eram seis cornetas emparelhadas – que ecoava a música, despertando prazerosamente à vizinhança.
O irmão e a irmã mais velhos do menino vivenciaram, dois anos antes, os gestos de grandeza de Lourival Paixão: as caronas. É verdade que os irmãos, vez por outra, ofertavam uma galinha capoeira, feijão e milho verde na época do inverno; jerimuns e cozinhados de batata-doce que o pai plantava quando os açudes (da casa velha e o lá de baixo) davam vazantes. Ele nunca cobrou nada. Recebia as ofertas com leveza e contentamento. Acenava sorrindo e balançava afirmativamente a cabeça. Quando o menino entrou na escola aumentou para quatro os caroneiros. A caminhoneta podia vir de qualquer jeito – quando lotada se apertavam, um sentava no colo do outro e ninguém ia a pé. As ofertas não eram a razão das caronas. Tanto que nas estiagens elas sumiam e as coronas continuavam.
Os estudantes economizavam uma hora de caminhada. Eram 6 km de distância. De forma que o menino chegava ao colégio sempre 50 minutos antes. E esse tempo fez a diferença no processo de aprendizagem – ele concluía as tarefas passadas para casa e revisava as matérias. Em casa o tempo era ocupado com as obrigações do roçado e a mãe afirmava: “aqui é pra trabalho pesado e sério. E a noite é pra dormir”. O patrão já havia resmungado afirmando que para limpar mato e tratar de gado não precisava de estudo. A mãe havia respondido, a contragosto do marido, que tinha fé em Deus que os filhos dariam “pra gente”. Por isso tinham que trabalhar como “bicho”.
Além de revisar as matérias, sobrava tempo para brincar (de futebol, garrafão, matada, bola de gude, pinhão). Quando perdia a carona ia a pé. A volta era sempre a base da “viação canela”. O sol do meio-dia castigava! E não passava outro “Lourival”. Algumas vezes, a esperança e o pertencimento em dias melhores esvaeciam. Mas os sonhos continuavam!
Assim, Lourival Paixão contribuiu para um futuro melhor para aqueles estudantes. Seu jeito sensível e simples de se comunicar sem expressar palavras deixou uma lição, especialmente para o menino, de que é possível melhorar a vida de muita gente sem se fazer alarde ou autopromoção, mas agindo com discrição e humildade. Utilizando-se de recursos disponíveis; pequenas coisas. Não buscando fora aquilo que está dentro. Lourival agiu com paixão e pertencimento à vida e ao ser, em um lugar de ausência do poder público. Ele saiu fisicamente da vida dos estudantes como entrou: discreto e sem palavras. Para entrar gigantemente em seus corações pelas ações e gestos.

* Professor da UFRPE e membro da Academia Igarassuense de Cultura e Letras.